cabelo

Aceitação

Por em maio 21, 2016

Hoje é dia 21 de maio de 2016, e faz quinze anos que minha mãe morreu.
Lembro de acordar no meio da noite na casa dos meus tios com um barulho na sala, e imediatamente saber o que tinha acontecido. Eu simplesmente sentia. Em poucos minutos, meu pai entrou no quarto e confirmou que era pra sempre – eu, que nunca tinha visto ele chorar, tive que lutar para respirar por conta do abraço extremamente apertado que ele me deu enquanto soluçava.
Comecei a minha primeira fase do luto, a negação, ao ir pra escola no dia seguinte e agir como se nada tivesse acontecido. Eu sentia os olhares de pena dos adultos e de estranhamento das crianças, mas eu tinha que continuar vivendo normalmente, não podia causar mais dor e preocupação pro meu pai, não podia ser um estorvo pros meus irmãos; apesar dos meus meros sete anos de idade, tinha que ser uma adulta e negar que aquela perda fosse algo significante e que nada na minha vida iria mudar.
Depois veio a raiva. “Por que ela fez isso comigo?”, “Por que logo a minha mãe, por que não a mãe de outro?”. Direcionei a raiva à ela, por me abandonar; à Deus, por tê-la matado; à meu pai, por ainda estar vivo; ao mundo e às pessoas, por não sentirem minha dor; e até mesmo à mim, por não ter sido uma filha melhor. “Talvez”, eu pensava, “talvez se eu tivesse sido uma filha melhor, dito que a amava mais vezes, ela ainda estaria viva”. Me culpei e me odiei.
Na minha pré-adolescência, a fase que prevaleceu foi a negociação. Seria a filha perfeita e não cometeria os mesmos erros de antes, e por isso Deus não tiraria o que me restava. Ir bem na escola era tudo o que eu tinha que fazer, trazer orgulho e alegria pro meu pai. “Ela morreu, mas tem um lado bom nisso. Agora eu sei o que eu tenho que fazer, quem eu tenho que ser”. Acho que eu estava barganhando com Deus, tentando encontrar um motivo pra aquilo ter acontecido, uma justificativa que transformaria a tragédia num grande aprendizado.
Junto com a puberdade e um turbilhão de hormônios, veio a depressão. Aos poucos fui virando uma pessoa fechada e infeliz, que se via como uma coitada sem salvação. Tive meu primeiro ataque de pânico quando percebi que não lembrava da voz da minha mãe. Afinal, quem era minha mãe? O que de fato eu lembrava dela, além da dor? No meu processo de negação, apaguei inconscientemente praticamente todas as lembranças que tinha dela, numa tentativa desesperada de não sofrer mais. Agora, esse vazio era o responsável pela minha dor, cada vez mais insuportável.
Outros acontecimentos ajudaram a transformar minha depressão de uma efêmera fase de luto em um estado permanente de vivência. Os surtos de pânico e tristeza foram abrindo lugar para uma dormência, um vazio profundo, uma falta de vontade de viver. Quantos anos se passaram nos quais eu acordava toda manhã e desejava pela morte? Quantas vezes eu não cheguei a um passo de acabar com minha dor? Na verdade, a pior parte é que, até recentemente, eu não sabia que isso era depressão. Não sabia que tinha alguma coisa de errado comigo, que a vida é muito mais do que essa sofrência sem fim – eu achava tudo aquilo muito normal. Era assim que eu era, e sempre seria. Cheguei muitas vezes a pensar que já tinha aceito a morte dela e que essa constante infelicidade não era ligada à isso, era simplesmente minha personalidade.
Esse ano tive minha wake up call, atingi meu fundo do poço. Finalmente entendi que não estava bem, e me senti pronta para procurar ajuda. Não algo provisório como as drogas que há tantos anos disfarçam minha dor, mas algo que iria me fazer melhorar definitivamente – terapia. É um processo longo, quiçá de anos, mas acredito que finalmente estou entrando na fase final do luto, a aceitação. Meus outros problemas, nem todos originários desse trauma de infância, também começam a se desenrolar aos poucos e posso ver uma luz no fim do túnel. Ela é pequena e está bem longe, mas está brilhando e me chamando.
Sempre ficarei triste nesse dia e a dor irá me acompanhar pelo resto da vida, mas, hoje, pela primeira vez, posso dizer que me sinto em paz. Finalmente libertamos as cinzas de minha mãe (enterradas em um belo jardim, ajudando no crescimento de um ipê amarelo) e me libertei também da culpa, da raiva, da vergonha. Vou aceitar o que aconteceu, vou crescer com isso, e vou seguir em frente. Finalmente vou poder focar na minha vida, e fazer alguma coisa além de me lamentar. Tudo o que eu deixei de viver nesses últimos anos enquanto estava dormente graças a depressão sem ao menos saber: now is the time.
A mudança interior reflete no exterior, já me disseram. De muitas maneiras isso é verdade, e decidi levar isso ao pé da letra e fazer algo que há tanto tempo temia: cortar o cabelo.
“Medo de cortar o cabelo?”, você pode me perguntar. Claro que tem um pouco de vaidade envolvida, mas, pra mim, o cabelo comprido tem um significado mais profundo.

Quando eu era pequena, queria ter cabelo loiro. Culpe a Barbie, a TV, whatever. Mas minha mãe dizia que meu cabelo era lindo: “castanho com fios de ouro”, que “as mulheres pagavam caríssimo pra ter um cabelo igual ao meu”. Ela dizia isso enquanto penteava ele, e fazia eu me sentir melhor.
Ela teve câncer, então perdeu o próprio cabelo. Não chegou a ficar careca, mas cortou bem curtinho, e comprou uma peruca. Ela sempre fingia que estava bem, tentando proteger o resto de nós, mas um dia eu vi ela sofrendo e percebi que aquela doença não era tão simples quanto eu pensava. A porta entreaberta, ela chorando enquanto penteava a peruca. Meu cabelo era curto estilo chanel, e naquele momento eu decidi que iria deixá-lo crescer para dar pra minha mãe. “Ela vai gostar mais da peruca se for com meu cabelo”, eu sonhava.
Quando ela morreu, meu cabelo mal tinha passado da altura dos ombros.
Ela nunca soube do meu plano, e nunca pôde usar a peruca que eu queria dar pra ela. E eu nunca tive coragem de cortar essa conexão entre nós. As memórias se foram, mas o cabelo estava ali, me dando apoio. Triste, nervosa? Passa a mão no cabelo, finge que é a mão dela.
Agora que entrei na fase da aceitação, finalmente me pareceu certo me livrar dessa bengala emocional. Cortei, e vou enviar para a instituição Rapunzel Solidária, que cria perucas para meninas e mulheres com câncer. No final das contas, eu vou ajudar alguém. Não é quem eu planejava ajudar, mas sei que têm pessoas por aí sofrendo tanto quanto minha mãe sofreu, e que esse pedacinho de mim pode ajudar, mesmo que só um pouco, a diminuir sua dor. Meu cabelo vai cumprir seu ciclo.
Mãe, eu não acredito plenamente que você esteja nesse lugar que as pessoas chamam de céu, e mesmo que estiver, duvido que você saberia como acessar um blog hahaha! Mas eu te amo. Obrigada, e desculpa. Prometo que vou me esforçar pra ser uma pessoa melhor e mais feliz daqui pra frente, como eu sei que que você queria. Se der, garante aí que meu cabelo vá pra alguém que precisa :)

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